Combos vacinais, reforços anuais e desinformação: como o mercado interfere na imunização dos pets e na saúde pública?
O mercado pet brasileiro cresceu significativamente nas últimas décadas, impulsionado por uma nova configuração familiar: a família multiespécie, onde cães e gatos ocupam posição de membros afetivos centrais. No entanto, esse crescimento traz questionamentos éticos importantes: até que ponto o marketing e a venda de produtos e serviços devem influenciar decisões de saúde e prevenção em pets?
No campo da imunização, as práticas comerciais têm influenciado diretamente a formulação, venda e aplicação de vacinas, muitas vezes sem respeitar princípios epidemiológicos e diretrizes técnicas recomendadas por entidades internacionais, como a World Small Animal Veterinary Association (WSAVA).
Vacinação: uma ferramenta essencial de saúde pública
As vacinas são imunobiológicos que desempenham papel fundamental na prevenção de doenças infecciosas em cães e gatos. Mais do que proteger os próprios animais, algumas vacinas têm impacto direto na saúde humana, especialmente no controle de zoonoses como raiva e leptospirose.
Portanto, a vacinação correta deve ser vista como parte da estratégia de saúde pública, e não como mera adesão a um calendário comercial.
Combos vacinais: proteção ampliada ou excesso de antígenos?
No Brasil, a maior parte das vacinas para cães e gatos é disponibilizada em combinações multivalentes, popularmente conhecidas como “combos vacinais”. Essas associações podem conter de 3 a 10 antígenos diferentes em um único frasco — muitas vezes sem considerar a real necessidade ou relevância epidemiológica desses agentes para aquele paciente ou região.
Segundo a WSAVA, o conceito de “vacinas essenciais” inclui apenas 3 ou 4 agentes, dependendo da espécie e da prevalência regional. São antígenos que oferecem:
- Alta virulência e letalidade
- Distribuição mundial
- Transmissão significativa entre animais (ou entre animais e humanos)
- Capacidade de resposta imune robusta e duradoura.
Exemplos de vacinas essenciais:
- Cães: Cinomose, Hepatite infecciosa (CAV-1/CAV-2), Parvovirose e Raiva
- Gatos: Panleucopenia, Calicivirose, Rinotraqueíte e Raiva.
Observação: No Brasil a vacina contra leptospirose para cães e leucemia felina para gatos são consideradas essenciais de acordo com o cenário epidemiológico.
Outros agentes podem ser indicados em casos específicos, mas não devem ser universalmente aplicados, como por exemplo a Bordetella bronchiseptica e Parainfluenza. Além disso, agentes como giardia e coronavírus não são recomendados por não apresentarem evidências científicas quanto a sua eficácia.
Reforços anuais: mito ou necessidade?
A noção de que toda vacina deve ser repetida anualmente é um equívoco perpetuado por tradição ou interesse comercial.
Segundo a WSAVA:
- Vacinas vivas atenuadas (como contra cinomose e parvovirose) induzem memória imunológica duradoura. Após o protocolo inicial, apenas reforços trienais são necessários.
- Vacinas inativadas (como leptospirose e raiva) exigem reforço anual devido à menor persistência da resposta imune.
O desafio do veterinário: protocolos personalizados x limitações comerciais
Veterinários enfrentam um desafio prático: a maioria das vacinas disponíveis no mercado brasileiro está em formulações combinadas, o que dificulta a personalização de protocolos conforme as diretrizes internacionais.
Os laboratórios alegam que seguem a “preferência do consumidor”. Mas será que essa preferência é informada?
Provavelmente não. Responsáveis bem informados prefeririam proteger seus pets com vacinas essenciais e seguras, evitando antígenos desnecessários e reduzindo o custo do protocolo vacinal — o que aumentaria a adesão e o alcance populacional da imunização, promovendo imunidade coletiva e redução da incidência de doenças.
Caminhos para a mudança: o papel da classe veterinária
A transformação desse cenário depende, sobretudo, de informação técnica acessível aos responsáveis pelos pets. A classe veterinária tem papel fundamental ao:
- Explicar aosresponsáveis o que são vacinas essenciais
- Desmistificar a necessidade de reforços anuais em todas as situações
- Demandar da indústria farmacêutica opções vacinais mais segmentadas, como ocorre nos EUA e Europa.
A vacinação de cães e gatos não pode ser conduzida apenas por interesses de mercado. O veterinário tem papel central na construção de protocolos baseados em ciência, ética e contexto epidemiológico local. E os responsáveis pelos pets têm o direito e o dever de estarem bem informados.

