Gasometria é aquele exame que chega na tela cheio de números (pH, PCO₂, HCO₃⁻, BE, AG...) justamente quando o plantão está mais cheio, o paciente mais instável e o tempo mais curto.
Os distúrbios ácido-básicos são extremamente comuns em pacientes de emergência e UTI e estão diretamente ligados a perfusão, função cardiovascular, resposta a drogas e prognóstico. A boa notícia: você não precisa dominar fórmulas avançadas para tomar decisões seguras. Um roteiro simples já resolve a maioria dos casos de pronto socorro.

Conceitos essenciais sobre distúrbios ácido-básicos em cães e gatos
pH, acidemia, alcalemia e processos ácido-básicos
pH é a medida da concentração de íons H⁺ no sangue.
Na prática, o pH resulta do equilíbrio entre:
- HCO₃⁻ (bicarbonato) → componente metabólico
- PCO₂ → componente respiratório, ligado à ventilação
Termos importantes:
- Acidemia: pH abaixo da faixa de referência
- Alcalemia: pH acima da faixa de referência
- Acidose / alcalose: processos que empurram o pH para baixo ou para cima (mesmo que, momentaneamente, o pH ainda esteja normal por compensação ou distúrbios mistos).
Diferença entre distúrbio metabólico e respiratório
Sempre pense assim:
- Distúrbio metabólico: alteração primária do HCO₃⁻
- Distúrbio respiratório: alteração primária da PCO₂
O organismo tenta compensar para manter a relação HCO₃⁻/PCO₂ o mais estável possível, usando pulmões (compensação rápida) e rins (compensação lenta).
5 Passos para Interpretação Gasometria Veterinária na Emergência
Em vez de "ler número por número", siga um roteiro fixo de raciocínio. Isso ajuda a reduzir a ansiedade e torna a interpretação mais reprodutível no dia a dia.
5 passos básicos:
Passo 1 -- Olhar o pH
Passo 2 -- Identificar o distúrbio primário (metabólico x respiratório)
Passo 3 -- Avaliar se há compensação adequada
Passo 4 -- Avaliar o Base Excess (BE) como componente metabólico
Passo 5 -- Calcular o ânion gap (AG) nos casos de acidose metabólica
A partir daí, você cruza o resultado com o quadro clínico (choque, sepse, doença renal, vômitos, diarreia, intoxicações, ventilação mecânica etc.) e direciona o tratamento.

Principais cenários ácido-básicos no pronto socorro veterinário
Acidose metabólica de alto ânion gap
Frequentemente associada a:
- Choque e sepse → acidose láctica
- Cetoacidose diabética
- Insuficiência renal descompensada
- Intoxicações (etilenoglicol, salicilatos, entre outras)
Padrão típico na gasometria:
- pH baixo
- HCO₃⁻ baixo
- BE negativo
- Ânion gap aumentado
Na prática, esse padrão é um sinal de gravidade e hipoperfusão. Acidose láctica importante costuma andar ao lado de maior mortalidade, o que justifica uma revisão agressiva de volemia, perfusão, foco infeccioso e suporte hemodinâmico.
Acidose metabólica hiperclorêmica (ânion gap normal)
Aqui o problema está mais relacionado a bicarbonato e cloreto:
Perda de bicarbonato:
- diarreia intensa
- fístulas
- drenagens entéricas.
Ganho de cloreto:
- Infusão em grande volume de NaCl 0,9%,
- Outras soluções ricas em Cl⁻ sem correção adequada.
Na gasometria, o que aparece é:
- pH baixo
- HCO₃⁻ baixo
- BE negativo
- Ânion gap dentro da faixa de referência, porém com cloreto elevado (hipercloremia)
Esse padrão convida a revisar histórico de fluidoterapia, perdas digestivas e função renal.
Alcalose metabólica
Cenários clássicos:
- Vômitos prolongados, particularmente com perda de conteúdo gástrico rico em HCl
- Uso de diuréticos, sobretudo de alça
- Estados de hiperaldosteronismo ou hiperaldosteronismo funcional
Na gasometria:
- pH alto
- HCO₃⁻ alto
- BE positivo
O manejo passa por:
- Corrigir volume e cloreto
- Repor potássio
- Tratar vômitos e ajustar a dose/uso de diuréticos, além de investigar possíveis causas endócrinas.
Acidose respiratória
Reflete hipoventilação, ou seja, retenção de CO₂:
Possíveis causas:
- Depressão do centro respiratório (fármacos como anestésicos e opioides, trauma craniano)
- Obstrução de vias aéreas
- Doença pulmonar grave que compromete ventilação
- Fadiga de musculatura respiratória.
Padrão gasométrico:
- pH baixo
- PCO₂ alta
- HCO₃⁻ inicialmente normal (fase aguda)
- em quadros crônicos, HCO₃⁻ e BE tendem a se elevar (compensação renal estabelecida)
O foco terapêutico é melhorar ventilação: manejo das vias aéreas, analgesia, broncodilatadores, oxigenoterapia e, se necessário, ventilação mecânica.
Alcalose respiratória
Reflete hiperventilação, com eliminação excessiva de CO₂:
Causas frequentes:
- Dor intensa ou desconforto
- Ansiedade e estresse
- Hipoxemia
- Determinadas intoxicações
- Ventilação mecânica ajustada para volumes ou frequências muito elevados.
Na gasometria:
- pH alto
- PCO₂ baixa
- com o tempo, HCO₃⁻ e BE podem diminuir levemente (compensação renal)
O tratamento depende de controlar a causa da hiperventilação: analgesia adequada, ajuste da ventilação, correção de hipóxia e suporte ao paciente.
O que realmente importa: tratar o número ou tratar o paciente?
Um ponto chave para não se perder na gasometria é lembrar:
O objetivo não é "normalizar o pH a qualquer custo", e sim tratar o processo que está causando o distúrbio ácido-básico.
Alguns exemplos práticos:
- Na acidose láctica, o alvo principal é corrigir choque, perfusão e foco séptico, não apenas "empurrar" o pH para cima com bicarbonato.
- Na alcalose metabólica, o centro é resolver perda de volume e cloreto, ajustar diuréticos e tratar o sintoma causador (como vômitos).
- Na acidose respiratória, o ajuste da ventilação é mais importante do que mexer diretamente no HCO₃⁻.
O bicarbonato de sódio tem indicações específicas (intoxicações, acidose metabólica muito grave com pH crítico), mas o uso indiscriminado pode piorar a situação: aumenta CO₂, altera cálcio ionizado, pode sobrecarregar sódio e modificar a hemodinâmica.
Erros comuns na interpretação da gasometria na emergência veterinária
1. Olhar apenas o pH
Um pH aparentemente normal pode esconder dois distúrbios atuando em sentidos opostos (por exemplo, acidose metabólica + alcalose respiratória). Sempre avance na análise de HCO₃⁻, PCO₂, BE e ânion gap.
2. Confiar só nos "flags" do aparelho
Os marcadores automáticos ajudam, mas não substituem o raciocínio clínico. Integre:
- Achados de exame físico
- Sinais de perfusão
- Lactato, eletrólitos, função renal,
- Exames de imagem de tórax, entre outros.
3. Ignorar a albumina ao avaliar o ânion gap
Em pacientes com hipoalbuminemia, o AG pode parecer normal mesmo em acidose de alto gap. Sempre que possível, utilize fórmulas de AG corrigido pela albumina ou, ao menos, interprete o valor com esse contexto em mente.
4. Esquecer da temperatura
A temperatura do paciente interfere no resultado. Sempre siga a recomendação do equipamento quanto à correção por temperatura ou informe a temperatura real na hora do exame.
5. Tratar o exame e não o paciente
Gasometria é instrumento de decisão, não o objetivo final. A pergunta central é:
“O que esse padrão ácido-básico me diz sobre perfusão, ventilação, função renal e estado metabólico deste paciente?”
A partir disso, você organiza prioridades de tratamento.
Como o VetGuide pode apoiar seu raciocínio ácido-básico no plantão
Na prática, ter roteiros prontos e calculadoras integradas faz toda a diferença na hora em que o plantão está mais crítico. Com o VetGuide, você pode:
- Abrir o conteúdo de Interpretação da hemogasometria arterial para seguir o passo a passo.
- Usar a calculadora de ânion gap quando indicada.
- Revisar rapidamente, em Distúrbios do equilíbrio acidobásico, as principais causas e condutas iniciais para cada padrão encontrado.
- Registrar na ficha não só os números, mas a interpretação: qual o distúrbio principal, se há distúrbio misto, possíveis causas e plano terapêutico.
Assim, os distúrbios ácido-básicos deixam de ser um motivo de “pane” na tela da gasometria e passam a ser um aliado na tomada de decisão clínica rápida e segura no pronto socorro.