Aerofagia em cavalos: sinais, diagnóstico e manejo — caso clínico comentado para prática de campo



Apresentação do caso clínico

Paciente:Tornado”, castrado, Quarto de Milha, 8 anos, 490 kg
Histórico: desempenho oscilante no último mês, dois episódios de cólica leve tratados no piquete, aumento de nervosismo à tarde. A proprietária relata que, nos horários mais silenciosos do haras (início da noite e madrugada), o cavalo “agarra” a borda do cocho, estica o pescoço e emite ruído, seguido de deglutição e lambedura dos lábios.
Manejo: baia 3×3 m, ventilação moderada, 22 h/dia estabulado; saída para passo em mão ~30 min/dia. Concentração 2x/dia; feno limitado (apenas após treino). Sem enriquecimento ambiental. Há um segundo cavalo na baia vizinha com comportamento semelhante.
Treinamento: rotina intensa, calendário de provas; animal reativo/agitado por temperamento.


Exame físico e achados direcionadores

  • Marcas de dentes evidentes na porta e no cocho de madeira.
  • Desgaste incisivos: pinças e médios com abrasão excessiva (Triadano 101, 201, 301, 401 e 102, 202, 302, 402).
  • Musculatura cervical: discreta hipertrofia do esternocefálico.
  • Sinais vitais dentro da normalidade; escore corporal 5/9. Abdômen sem distensão.
  • Durante observação na baia: episódios repetidos de aerofagia com apoio (mordida no objeto fixo, extensão caudodorsal do pescoço e entrada de ar), seguidos de deglutição; em intervalos, movimentos labiais e cabeça sem apoio (“batendo” lábios e contração cervical).

Considerações etiológicas (ligadas ao caso)

  • Estereotipia adquirida e aprendida por modelagem social (exposição a um baio vizinho com o mesmo vício).
  • Estabulação prolongada, baia pequena e pouco tempo comendo favorecem o comportamento.
  • Perfis neuroquímicos alterados em animais sob estresse crônico em estabulação (baixa serotonina e dopamina), com impacto em controle de impulsos e recompensa, sustentam e reforçam a estereotipia.

Diagnóstico e diferenciais

O diagnóstico clínico da aerofagia equina é pela observação direta das duas formas:

  • Com apoio: mordida de superfície fixa, tracionamento e aerofagia.
  • Sem apoio: movimentos de cabeça/lábios e contração cervical com ruído característico.

Diferenciais a investigar/acompanhar: Dor crônica/ansiedade (como síndrome ulcerativa gástrica equina – EGUS), alterações dentárias associadas ao vício, cólicas recorrentes por aerofagia, frustração de manejo (tédio, isolamento social), e condições que aumentem o nível de excitação (rotinas irregulares e restrição alimentar).

Exames complementares (conforme necessidade clínica)

  • Avaliação odontológica completa e correções.
  • Endoscopia gástrica se houver sinais compatíveis com EGUS.
  • Revisão nutricional: oferta de fibra e distribuição ao longo do dia.

Plano terapêutico multimodal

Objetivo: reduzir estresse, diminuir a oportunidade de reforço do comportamento e proteger o trato gastrointestinal — sem prometer extinção total (algo raro em estereotipias).

1) Redução de estresse e enriquecimento ambiental

  • Diagnosticar o(s) gatilho(s) principal(is): tédio, isolamento, horários irregulares.
  • Mais tempo solto: instituir período diário de lazer/forrageio livre (piquete) sempre que possível.
  • Enriquecimento: bolas/brinquedos na baia; redes de feno (slow feeder) para prolongar o tempo comendo e contato visual/físico com outros equinos.
  • Rotina previsível: horários consistentes de treino e alimentação.

2) Prevenção do apoio

Modificar o ambiente para retirar superfícies de apoio (bordas lisas ou proteções).
Barreiras físicas podem reduzir oportunidade de mordida; a remoção do objeto de apoio da baia ajuda.

Observação importante: métodos aversivos (ex.: choques) não são recomendados pela possibilidade de dor, medo, piora do estresse e risco ético. Preferir soluções que não aumentem a ansiedade.

3) Dispositivos

Coleira anti-aerofagia: pode limitar a execução do comportamento. Retirar durante a alimentação, pois prejudica a deglutição. Usar sob supervisão, monitorando conforto, pele e eficácia.

4) Intervenções médicas/alternativas

Terapias alternativas: relatos de canabidiol (CBD) no controle e redução da aerofagia. Se considerado, avaliar legislação local e prescrever/monitorar sob responsabilidade veterinária.

5) Manejo odontológico e digestivo

  • Ajustes odontológicos periódicos (corrigir desgaste, evitar dor).
  • Plano nutricional: aumentar volumoso (feno de qualidade) em porções fracionadas/ao longo do dia; reduzir tédio alimentar.
  • Profilaxia cólica: fracionamento de concentrado, água limpa ad libitum, rotinas estáveis.
  • Reavaliação: revisar comportamento e episódios de cólica em 2–4 semanas, com ajustes conforme resposta.

Prevenção e controle (aplicável ao dia a dia do haras)

  • Simular vida livre: mais tempo em piquete, convívio social, baia ampla e ventilada, com vista para outros animais.
  • Rotina definida de treino e lazer; evitar longos períodos ociosos.
  • Feno várias vezes ao dia ou redes de feno para prolongar o tempo de ingestão.
  • Enriquecimento ambiental contínuo.
  • Companhia: quando seguro, ovino/caprino dócil na baia pode ajudar.
  • Evitar “contágio comportamental”: separar animais sem vício dos que já praticam aerofagia.
  • Educar a equipe: reconhecer sinais precoces (marcas de dentes, ruídos, deglutição/lambedura repetidas) e registrar rotina e episódios.

Observação

Aerofagia é a estereotipia mais comum nos equinos estabulados e um marcador importante de estresse crônico. A chave do sucesso é manejo multimodal, com foco em ambiente, tempo de forrageio, convívio social e rotina. Extinguir pode ser difícil — reduzir, proteger e prevenir é o caminho clínico mais ético e efetivo.

Quer saber mais sobre clínica e manejo de equinos?
Baixe o aplicativo VetGuide e acesse o Menu Equinos para explorar mais conteúdos.


Texto por: Simone Freitas
Responsável técnica: Dra. Simone Freitas CRMV- BA 1771 









Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem

Formulário de contato